Nota pessoal: uma pessoa que quer se manter anônima, que chamarei de A. para fins práticos, me enviou esse relato. Eu não alterei absolutamente nada no texto dela, nem mesmo um possível erro gramatical que possa aparecer (não vi nenhum). Agradeço à A. pela confiança depositada em mim, e por ter considerado que esse blog é um espaço seguro. Esse relato trata de abuso sexual durante a infância e dos sentimentos, principalmente a culpa, e acho importante acrescentar esse aviso porque embora eu nunca tenha determinado a classificação de qualquer relato, provavelmente a história é considerada "trigger": pode despertar memórias ruins e reprimidas em pessoas que sofreram abuso sexual, por exemplo.
É um relato sensível e corajoso e eu exijo de vocês respeito. Não tolerarei nenhum comentário ofensivo, debochado ou que indique qualquer sentimento não-empático para com A., e sim, eu apagarei tais comentários assim que eu perceber a existência dele. Se A. considerou esse blog um espaço seguro para se expor, então quero que esse blog continue sendo um espaço seguro.
Dados os avisos, segue-se:
É um relato sensível e corajoso e eu exijo de vocês respeito. Não tolerarei nenhum comentário ofensivo, debochado ou que indique qualquer sentimento não-empático para com A., e sim, eu apagarei tais comentários assim que eu perceber a existência dele. Se A. considerou esse blog um espaço seguro para se expor, então quero que esse blog continue sendo um espaço seguro.
Dados os avisos, segue-se:
Resolvi escrever depois de muito tempo em silêncio o que aconteceu comigo, porque eu não quero que o meu silêncio faça com que mais uma criança sofra o que eu sofri. E que infelizmente eu não posso de formas legais e jurídicas puni-lo, eu espero que algum dia ele saiba o que ele fez e de como eu não o perdoo por nada.
Infelizmente, eu não posso dar certeza absoluta quanto a minha idade, nem a idade dos meus primos. E nem quantas vezes aconteceu. Eu simplesmente perdi a memória disso.
Minha mãe e meu pai precisavam trabalhar e eu não tinha idade para ficar sozinha em casa. Então, o jeito era me deixar com quem pudesse cuidar de mim. Minha mãe me deixava com meus primos. Um tinha a minha idade e o outro era uns 7 anos mais velho, devia ter uns 17 anos.
Eu me lembro de pedir constantemente pra minha mãe não me deixar lá, ela nunca acreditava, achava que eu tava de brincadeira, fazendo show. E eu nunca dizia por quê. Eu sabia que o que acontecia não era certo, mas não entendia. Era tudo uma nuvem espessa na minha cabeça. Hoje com ajuda do feminismo eu entendo que o que aconteceu comigo não foi culpa minha e muito menos da minha mãe ou do meu pai. Eu entendo que a dupla jornada a impedia de cuidar de mim e de proteger. E que ela confiou em uma pessoa para cuidar de mim e essa pessoa abusou de mim. A culpa é toda dela.
Minha memória é muito falha. Eu me lembro de pouca coisa. Na verdade, eu sei que aconteceram inúmeras vezes, mas eu só consigo lembrar um dia. Era de manhã, estava passando um programa da Ana Maria Braga e aparecia um vermezinho de salada na TV. Eu estava no quarto com meu primo mais velho, porque ele me prendia lá – Vou chegar a essa parte mais tarde – e enquanto meu outro primo jogava Playstation 1 na sala. Eu lembro desse fato porque ele disse para eu olhar, enquanto ele estava com as suas mãos sujas dentro de mim. E eu sempre soube que estava tudo errado, mas eu não podia sair. Eu lembro que eu às vezes chamava e chamava meu primo da minha idade para vir brincar comigo, para ficar comigo, para me proteger porque eu sabia que ele não faria nada se eu tivesse com alguém.
E eu só lembro desse dia, minha memória apagou tudo. Eu vivi anos sentindo culpa, me sentindo suja, me sentindo impura, me sentindo puta porque ter deixado alguém fazer isso comigo. Alguém me invadir assim. Eu me lembro de ser muito sozinha e quando eu arranjei umas amigas, eu me sentia muito mal perto delas, eu me senti suja boa parte da minha vida. Eu tive dificuldade de me relacionar com meninos. Eu tinha medo de meninos mais velhos. Eu lembro uma vez que a minha mãe estava comigo no carro e com esse nojento também. E ela teve que me deixar sozinha para abrir o portão para ele entrar com o carro. E eu nunca senti medo na minha vida. Eu constantemente pensava que ele ia abusar de mim ali mesmo, que eu não ia conseguir gritar, que eu ia ser fraca, que eu não ia conseguir. Mas “graças a deus” nada aconteceu.
Eu mantive isso em segredo durante muito tempo. A primeira vez que eu falei foi com a minha melhor amiga. E ela me disse que isso nunca tinha sido culpa minha e que o único culpado de tudo era ele. Hoje eu sei que o único culpado é o machismo e, em segundo lugar, ele. Eu não posso tirar a culpa dele, mesmo sendo da família. Meus pais confiavam nele e ele abusou de tudo. Minha amiga tentou diversas vezes me convencer de contar tudo para minha família e desmascarar o babaca nojento que ele realmente é. Mas eu bem sei que isso acabaria com meu pai. Eu não posso nem imaginar, me dói demais pensar no sofrimento que eu vou causar ao meu pai. Então, eu decidi contar apenas para minha mãe. E foi aí que pela primeira vez eu pude entender o lado da minha mãe, eu sempre tive raiva dela por me deixar com qualquer pessoa, por me deixar sozinha, por não me proteger, mas hoje eu sei que ela não é culpada. E por isso eu também digo que o feminismo me ajudou a amar minha mãe.
fonte: ModernGirlBlitz |