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quinta-feira, 13 de junho de 2013

O dilema do Estado e o nosso direito ao nosso corpo.

para tudo.
amanhã, ou seja, dia 13 de junho, às dez e meia da manhã, Indianara vai ser julgada.
motivo: atentado ao pudor.
contexto: mostrou os peitos na Marcha das Vadias de RJ.
o nó da questão: Indianara é uma mulher trans. E o Estado não reconhece a identidade dela. Nos documentos civis, Indianara é um homem. Mas homens não são censurados em suas exibições de peitoral por aí na nossa sociedade.

dilema:
se Indianara for condenada, o Estado reconhecerá que ela é uma mulher - e vai abrir precedência jurídica para toda a galera trans que quer ser reconhecida com o gênero que tem há tempos, mas não tem saco pra ficar sendo julgada por um bando de médicos que só quer patologizar a coisa toda.
se Indianara não for condenada, o Estado afirmará que homens e mulheres não tem direitos iguais - o que fere o princípio básico da Constituição.

ou seja: o Estado tomou na cara e tem que dar um jeito nessa situação sem se estrepar muito. Porque de um lado vai ter que reconhecer a existência da galera transexual e aceitá-lo do jeitinho que são, com todo o amorzinho do mundo. De outro vai ter que falar pra todo mundo "olha, desculpa aí, mas mulheres não tem os mesmos direitos que os homens" e sofrer a ira eterna da gente - temos muita ira ainda pra sentir pelos aparelhos do Estado <3

sou sincera: gosto de ver essas coisas acontecendo e povo tomando na cara. gosto de imaginar a cara do policial que prendeu Indianara quando percebeu que Indianara era considerada homem e que, portanto, o julgamento dela iria ser problemático do ponto de vista do Estado. gosto de imaginar a cara do delegado dizendo "puta que pariu" quando se deu conta da situação. e quero muito que Indianara seja inocentada e que a tratem e a respeitem como uma mulher. ia achar um saco ela pegar cadeia por um motivo tão besta que é mostrar os peitos - grande merda. todo mundo tem seios e alguns são desenvolvidos, outros não. não é como se fosse obsceno.

Indianara pertence à duas categorias cujos corpos pertencem ao Estado/sociedade/qualquer merda que não é a gente: mulher e transexual.

Primeiro, como mulher, ela está sujeita à uma série de pressões que simplesmente não fazem sentido. Todas as mulheres sentem essa pressão - em menor ou maior grau, mas ela existe. Ela pode acontecer desde uma pressão social para emagrecer até uma censura pública porque cê é famosa e resolveu ir na praia tendo gordurinha. Se você é uma celebridade e tem celulite, prepare-se para ver fotos das suas pernas ampliadas 598412 vezes nas capas dos tablóides com manchetes amarelas afirmando o óbvio: que você, assim como metade da humanidade, tem celulite. Esses dias um cara resolveu postar uma foto de Britney Spears no grupo de Christina Aguilera no facebook super indignado e ofendido porque Britney não tinha depilado os pelos da virilha. Os pelos estavam claros e ele precisou dar zoom milhares de vezes, mas ainda assim se sentiu ofendido com a, pasmen!, constatação de que Britney Spears possui pelos. Como se você tivesse o direito de se ofender com o corpo de outra pessoa.

Porque você não tem.
Não.
Você não tem o direito de se ofender com a gordura do fulaninha.
Não tem direito de se ofender com a unha roída da sicraninha.
Muito menos tem direito de ficar patrulhando depilação alheia.
Simplesmente porque: você não tem esse direito. Aquele corpo é seu? Então.

(é a mesma coisa de você querer controlar a roupa, penteado, sapato alheio. NÃO DÁ. É óbvio que todos tem direito à uma opinião. É óbvio que você pode apenas pensar "poxa, não ficou legal essa blusa com essa saia". Mas ficar "MELDELZ QUE ABSURDO ELA NÃO DEPILA AS PERNAS SOS SUJA HORROROSA", porra, não, você não tem esse direito.)

O negócio é que existe uma divisão óbvia em cima do que mulheres e homens podem fazer com seus corpos. Não é paranóia minha. Você não vê tablóides desesperados com o peso de John Travolta, vê? Você não vê programas como o Fashion Police questionando as rugas de Paul McCartney. Simplesmente não acontece.

"mas, Luna, os caras tão cada vez mais vaidosos e valorizando isso-"

Não é a sociedade. É uma tendência e mais: é uma escolha. Se um cara não quiser, tudo bem. Ninguém vai falar pra ele que ele não vai arrumar uma garota se ele não cumprir os dez passos de como ser o mais bonito da festa. Eu não duvido nada que essa tendência cresça, porque é muito legal pro capitalismo criar necessidades que não existem para capitalizar em cima delas. Mas como uma tendência não se compara à uma crescente pressão histórica em cima da mulher, então não dá nem para comparar tamanha a diferença das forças em ação. Porque há uma diferença enorme quando vamos refletir sobre "pressões em cima do corpo" entre mulheres e homens que é uma:

~ o papel que ambos os gêneros devem desempenhar perante à sociedade. ~

Isso quer dizer: o corpo de uma mulher é, muitas vezes, tudo o que ela tem. Por séculos da nossa história ocidental, as mulheres foram subjugadas e forçadas a se manterem em um mundo no qual não tinham direito à voz. Isso significa que não podíamos votar ou sequer expressarmos nossas opiniões. Não era considerado que pudéssemos ser inteligentes. A mente feminina era considerada emocional, instável e desequilibrada, incapaz de executar um raciocínio claro e lógico. Isso significa que por séculos, fomos condenadas a ter apenas o nosso corpo como uma arma a ser considerada. Poderíamos enfeitá-los e decorar o lar do qual somos esposas e mães. Podemos decorá-los e sermos amantes e conseguirmos presentes caros que sustentam nossa vida. De qualquer maneira, a função de uma mulher acaba sendo atrelada à existência de um homem - ser esposa de um, ter um homem para ser mãe, ser amante de um. Então não podemos dizer que o corpo sempre foi propriedade nossa. Nunca foi - ele sempre tinha uma função que era ser bonito e decorar o ambiente. E sua função era validada por um homem.

Espera:

por que estou falando sempre "era"? como se tudo isso fosse passado? não é.

Veja só:
Por mais avanços que tenhamos conseguido, por mais que tenhamos conseguido ter mais cientistas e pensadoras mulheres, por mais que tenhamos conseguido diversos outros direitos e liberdades, ainda assim parece que o corpo feminino é meramente decorativo. Se você o usar em um protesto político, assim como Indianara o fez, será punida por atentado ao pudor - porque você não o usou para "embelezar" o ambiente e sim para reinvindicar algo que já é seu. Se você o usar amamentando um bebê em um espaço público, é capaz de pedirem para você sair por estar constrangendo outras pessoas - porque, sim, as pessoas acreditam que a função primária do seio é sexual, não a amamentação, e acham obsceno o ato de um bebê se alimentar do leite materno. O nosso corpo (feminino e cis) não pertence nem mesmo aos princípios básicos da natureza, como gerar vida: os médicos inventarão dificuldades para você ter um parto normal se assim o quiser, transformando a gravidez em uma doença, e então quando você tiver o filho, terá que cobrir seus seios ao amamentar - porque eles são sexuais e ofendem as pessoas com sua visão - e então as pessoas controlarão seu corpo e te acharão desleixada se você não pensar em perder os quilos ganhos com a gravidez.

E isso que nem falei do Estatuto do Nascituro que é de uma cretinice tão grande, mas TÃO grande, que tenho horror à ideia de pensar no dia que isso for aprovado. Porque sem condição.

Essa última parte, referente à gravidez, amamentação, etc., costuma ser o foco das mulheres cis (embora haja homens trans na causa, mas a causa não é tão popular por questões de invisibilidade política).

Indianara, porém, não tem seu corpo controlado apenas por ser mulher. Ela tem seu corpo controlado também por ser transexual. O fato de ela ter nascido com um pênis e dois testículos e a porra toda e o fato da identidade de gênero dela ser discordante do que lhe foi imposto lhe gera outros problemas: primeiro que a existência de alguém como ela é considerada uma doença. O Estado com seus aparatos médicos e jurídicos não tratam toda a situação como uma "identidade de gênero" que deve ser respeitada, mas como um "transtorno" que tem que ser tratado e será curado apenas com uma cirurgia de redesignação sexual. Indianara precisa de laudos assinados por psiquiatras e psicólogos e sabe-se quem mais para "provar" que é uma mulher.

Como cê prova que é mulher? Como cê prova que se sente qualquer identidade?

Então Indianara recebe um peso que não existe para as mulheres cis: ela é obrigada a se submeter às pressões já existentes para as cis, senão a identidade dela enquanto mulher é invalidade. Enquanto mulheres cis podem se rebelar e deixar de depilar as pernas (e ninguém vai achar que elas são "menos" mulher por isso), Indianara não pode. Ela tem que corresponder ao perfeito estereótipo de tudo que é feminino para que sua identidade seja validada. Mesmo que ela não goste de, por exemplo, saltos altos, ela terá que afirmar nas sessões médicas que gosta - senão não a acharão mulher o suficiente. Como se existisse um medidor do quão mulher você pode ser. Como se existisse mulheres de mentira e mulheres de verdade. Como se houvesse escala de mulherice.

Não existe.

E a maior crueldade é que Indianara está submetida à padrões tão binários e tão deterministas sobre o que é ser mulher e o que é ser homem e ela é julgada pelas próprias mulheres cis por isso. Porque enquanto de um lado não a consideram mulher o suficiente caso ela não corresponda perfeitamente à todas as imposições relativas ao corpo feminino, do outro a considerarão uma caricatura retirada dos anos 50. É um caminho sem saída do qual Indianara - e diversas outras mulheres trans - percorre. Não por escolha: ela nunca escolheu se sentir mulher. Você não escolhe o seu gênero. Você simplesmente não pode escolher a sua identidade como quem escolhe o que vai pegar de sobremesa do dia.

É sabido que o sistema oprime categorias diferentes, de diferentes formas. Há uma característica, porém, nessas opressões que eu considero especialmente perversa: a maneira como as próprias categorias podem se direcionar ao próprio sofrimento e oprimirem outras classes simultaneamente. Enquanto mulheres cissexuais sofrem com constantes pressões oriundas da ditadura da beleza e policiamentos constantes em relação ao aborto, por exemplo, também patrulham não apenas entre elas próprias, mas também as mulheres trans, debochando delas e considerando-se superiores por "serem mulheres de verdade". E pessoas transexuais são forçadas a se submeterem ao Estado em todas as suas esferas, inclusive jurídica e médica, e jogarem um maldito jogo no qual elas precisam pincelar a própria identidade com estereótipos baratos para conseguirem ser validadas pelo que são. É um jogo que ninguém ganha. É impossível. Estamos apenas colocando a corda no pescoço e chutando a cadeira embaixo de nós - é isso que você está fazendo quando oprime outra categoria. E quando oprime a si mesma.

O corpo de Indianara não pertence à ela. Ela foi presa por isso: o corpo feminino nunca pertenceu à mulher. O corpo feminino pertence ao Estado que determina onde e quando ele será obsceno ou adequado. Mas ela sendo considerada um homem pelo Estado, então poderia reinvindicar o corpo dela - mas não. Porque ela é uma mulher. Ela não vai fazer questão nenhuma de fugir da sentença se servindo dos seus documentos civis. O Estado será forçado a condená-la como mulher ou reconhecer a própria inaptidão em lidar com pessoas transexuais e suas diversas identidades.

Em suma: quem quer que seja o juiz ou a juiza vai ter que reconhecer, independente de qualquer coisa, que o corpo de Indianara foi reinvindicado por ela. Seja enquanto mulher ou pessoa transexual, Indianara exigiu o direito de usar o próprio corpo como bem quis entender - e tudo o que terão que decidir é se ela será punida por isso. E se sim, será punida como? Tendo a sua identidade negada e violada, sendo inocentada, ou tendo seus direitos ao próprio corpo negados, sendo condenada?

Aí está uma questão que espero ter a resposta amanhã.

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