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domingo, 28 de julho de 2013

Por que eu não me importo com os santos quebrados?


Eu gosto do olhar dessa moça. Realmente gosto.
Ok, polêmica do dia: manifestantes da Marcha das Vadias quebraram santos, provocando multidão católica. Além do beijaço lésbico que já havia rolado. Enfim, uma série de provocações aos católicos que estavam por lá, devido ao JMJ. Todo mundo sabe disso ou, pelo menos, todo mundo que está no Brasil e acompanha um pouco das notícias. Eu nem queria comentar a respeito, mas a questão suscitou polêmica em um nível que achei desnecessário, então vou apenas expor meus pontos aqui:

[ Esclarecimento fundamental ]

Toda vez que eu me refiro à ICAR ou ao cristianismo, eu me refiro especificamente à Instituição. É óbvio que a Instituição não funciona como uma coisa invisível que nos assombra, e sim como algo real, palpável, concreto que existe fisicamente, em prédios e pessoas. A ICAR só existe dessa maneira porque há o Papa, cardeais, bispos, padres e a multidão de católicos que validam sua existência. Mas eu gosto de distinguir dessa maneira, remetendo à estrutura em si. Eu não acho que ter uma fé individual seja errado. Eu só não acho que essa instituição deveria existir.

E eu faço essa distinção porque eu tenho amigas católicas e eu prezo muito pela amizade delas. Eu não quero que pessoas que lêem meu blog e que sejam, por acaso, católicas vistam a carapuça como uma crítica pessoal. Mas estou sendo polida demais e, me perdoem, a ICAR não merece um segundo de toda a minha educação.

 
[ I. Repulsa ao cristianismo ]

Minha aversão ao cristianismo não é gratuita. Eu não me tornei uma "hater" do Vaticano de graça. Não é como se o Papa fosse a Beyoncé e eu "apenas não fui com a cara". Vocês tem que entender isso principalmente: não é uma questão meramente de eu não compartilhar sua fé. É a questão de que a sua fé é utilizada pelos seus padres, bispos, cardeais, Papa E, como se não bastasse, pelos políticos, professores e toda e qualquer entidade com poder para ME violentar. Toda vez que um Papa qualquer se ergue e se pronuncia contra feministas, ele está diretamente ME atacando. Toda vez que as Igrejas se silenciam contra abusos sexuais cometidos contra crianças e mulheres em seus espaços, crianças e mulheres estão sendo abusadas. O abuso nem sempre é direto e físico: o próprio silêncio da entidade que possui o poder - nesse caso, a Igreja - pode ser uma agressão.

Então, não, não me peçam para defender os santos, a ICAR ou qualquer merda assim. A ICAR não me defende, não me apóia e, pior ainda, é a favor de leis que vão contra meus próprios direitos, como o direito ao aborto legal e seguro. A ICAR e a forma como ela é construída e todos os pensamentos que ela propaga vão contra diretamente tudo o que eu penso e defendo.

Rolou uma distribuição de cartilhas horrorosas que são machistas, homofóbicas e transfóbicas durante a JMJ. Distribuíram até uns fetinhos ridículos com mensagenzinha de "mimimi pró-vida". Porra. Vocês organizam esse festival de horrores (sim, de horrores, porque o que vou levar pra sempre desse JMJ é a imagem do boneco em forma de feto, coisa de extremo mau gosto). Eu nunquinha vou defender vocês. Não tenho nem motivos para defender uma Instituição que reúne tudo que mais odeio no mundo.

 
[II. Pagando na mesma moeda ]

Marcha das Vadias não é e nunca foi um movimento para angariar popularidade. Se fosse, não tinha nem esse nome. Se fosse, as mulheres sequer sairiam de peito de fora. Acreditem, o feminismo nunca foi e nunca será um movimento limpo, esterilizado e feito para ganhar a simpatia de vocês. Não queremos que a ICAR nos aprove. Queremos que a ICAR cale a boca e faça seu serviço apenas dentro de suas igrejas. E podem acreditar que no dia que o feminismo virar um movimento único, unidirecional e seu propósito for se higenizar o máximo possível para que todos nos aprovem, eu serei a primeira a abandoná-lo. Portanto, não faz sentido dizer que quebrar santos nos prejudicará para conseguir nossos objetivos.

Não somos políticas. Não estamos tentando agradar vocês, porque se estivéssemos tentando, pode apostar que nem a Marcha das Vadias iria existir.
Aliás, um adendo: não é que eu não acredite na força do diálogo. Eu acredito. Mas o diálogo só vai funcionar quando ambos os lados se proporem a dialogar e a cederem. Acontece que um dos lados nunca irá nos ouvir e nós nunca cederemos, porque são nossos direitos e não aceitamos receber menos do que merecemos. Então diálogo pacífico, cordial e tranquilo não é a solução aqui.

Vamos analisar aqui, então, a situação:
• A ICAR tem uma longa história de misoginia, homofobia, transfobia, racismo, classismo e etc, etc, etc.
• Há uma forte rejeição à umbanda e candomblé dentro do nosso país, no qual as religiões - que são distintas - são tidas como uma única, denominadas como macumba e, então, demonizadas.
• Ser ateu, no Brasil, é um bom motivo para você ser uma pessoa odiada. Eu, por exemplo, neguei ser atéia enquanto eu trabalhava porque tive real medo dos meus colegas de trabalho. Sério.

Esse cenário no qual as pessoas são acuadas diante dos dogmas cristãos é o nosso cenário. É o cenário da minha vida, dos meus amigos, do povo que sigo no Twitter, Facebook, o cacete a 4. É o nosso mundo, e - no entanto - vocês se esquecem disso tudo quando essas feministas vandalizam uns símbolos católicos. Vocês tem razão: não deveríamos pagar nada na mesma moeda. Mas isso nem sequer é pagar na mesma moeda. É pequeno. É praticamente nada diante de dois mil anos de história no qual uma ICAR atravessou períodos de dominação absoluta.

Porra, dizer que não é pra pagar na mesma moeda implica na ideia de que existe uma simetria justa. Como se fosse eu e minha irmã brigando entre nós por um pedaço de bolo. Mas não é. São um punhado de feministas que sequer tem todos os direitos que deveriam ter versus uma Igreja cujo dinheiro poderia acabar com a fome do planeta com milhares de fiéis que, ainda que não sejam "100% católicos", propagam dogmas cristãos que estão infiltrados em nossas escolas e câmaras federais. Gente, não é uma luta justa. A Igreja é mais poderosa que a gente, seus fiéis são mais numerosos do que nós e temos mais políticos representando o lado deles do que o nosso. Não é sequer justo considerar que a defesa é proporcional ao ataque. 

O nosso movimento não pode nunca ser um movimento para implorar "popularidade" e "aceitação" porque não queremos ser iguais a vocês. O nosso movimento exige - e essa é a palavra certa: exige - que tenhamos os mesmos direitos, que sejamos tratados de forma igualitária e que sejamos respeitados em nossas diferenças. Não queremos que vocês sintam piedade de nós e de nossas condições marginalizadas, mas que você saia do caminho se não quiser ajudar e não seja um obstáculo para obtermos nossos direitos que nos foram negados há anos.
 
"Você não pode oprimir um opressor" - fuckyeahsubversivekawaii

[ III. Conclusões finais ]

1. Eu sou absolutamente contrária à qualquer tentativa de higienizar o movimento para torná-lo mais palatável. Não gosto de feministas branquinhas, limpinhas e de classe média que falam que "só querem salários iguais" e que ignoram as necessidades das mulheres latinas, pobres, negras, transgêneros, etc. Não gosto do movimento LGBT sendo GGGG priorizando caras gays e limpos. Não gosto de políticas pouco agressivas que sirvam para "acostumar a sociedade". As nossas necessidades são urgentes. Os nossos direitos devem ser atendidos agora porque enquanto estou escrevendo isso, minorias estão sendo abusadas e assassinadas. O meu estilo de escrita é extremamente dramático, mas isso não significa que eu esteja exagerando quando eu falo de abuso e morte: qualquer busca no Google confirma o que estou dizendo. A sociedade - enquanto estrutura - nunca nos aceitará enquanto insistirmos em "irmos com calma". Mas ela será forçada a nos engolir quando nós percebemos que não precisamos de ninguém para validar nossas existências.

2. Eu não me interesso, de maneira alguma, em defender qualquer religião monoteísta que domine parte da nossa sociedade. Deixo as críticas ao islamismo às mulheres islâmicas ou de países em que sejam afetadas por ele, de modo que islamismo - que eu não gosto, assim como não gosto do cristianismo - não é parte da minha bandeira. Nunca, nunquinha acreditem por um segundo que eu dedicarei meu tempo para defender a ICAR de qualquer coisa, assim como nunca defenderei a bancada evangélica. Eu posso defender um determinado padre ou uma determinada fiel, mas defender os interesses da ICAR é, ao meu ver, perder tempo útil que eu poderia gastar vendo gifs de gatinhos. De modo que quando vi as primeiras notícias e todas as críticas, nunca passou pela minha cabeça dar razão à ICAR ou criticar as feministas que o fizeram.

Euzinha, particularmente, não colocaria uma cruz dentro de mim, sabe, mas é como diz Hailey no twitter: cada um sabe o que enfia no teu cu. Eu prefiro não enfiar nada. Nada contra quem prefere. :)

3. Não confundam violência do opressor com resposta do oprimido. Nunca. NUNCA. Quebrar santos foi uma resposta à algo muito maior que dura anos, mais anos do que eu posso contar. É uma resposta à sociedade inteira e aos moldes em que foi fundada, uma resposta à uma religião que insiste em invadir espaços que não pertencem à ela e determinar como deveríamos viver, uma resposta ao Estado que permite que essa violação aconteça. Eu não peço a vocês que gostem disso ou que passem a defender. Eu só peço que entendam esse pequeno detalhe, porque isso faz toda a diferença.

4. Militância não é um espaço isento de emoções. Há raiva, ódio, tristeza, angústia, preconceitos. Eu falo da ICAR enquanto Instituição, mas não visualizem como uma entidade superior, mas como algo feito por pessoas humanas: o próprio Papa, seus cardeais e bispos, os padres e freiras, seus fiéis que gastaram dinheiro para ir até a JMJ, seus fiéis espalhados pelo mundo inteiro. Essa opressão não funciona como uma entidade maligna abusando de pobres pessoas inocentes, mas de pessoas contra pessoas, cujas opressões se intersecionam. Brancos contra negros, homens contra mulheres, heterossexuais contra homossexuais/bissexuais/pansexuais, cisgêneros contra transgêneros, ricos contra pobres e por aí a lista segue. Mas nós somos pessoas e somos feitas de sentimentos. Se eu digo que eu não vou tomar partido, não estou agindo apenas porque racionalmente eu decidi que eu irei apoiar o feminismo, mas porque emocionalmente tenho aversão ao cristianismo.

Ninguém se isenta disso. Não somos máquinas, somos pessoas agindo pelos nossos interesses.

5. Outro detalhe que todos adoram esquecer, mas sou chata e vou lembrar: objetos não são mais importantes que pessoas. Prédios não são mais importantes que pessoas. Monumentos públicos não são mais importantes que pessoas. Obras de arte não são mais importantes que pessoas. Livros não são mais importantes que pessoas. Não existe uma situação em que objetos em forma de santos ou prédios ou monumentos ou ruas ou orelhões devam ser considerados mais importantes do que pessoas. Pessoas vivem e morrem assassinadas por um sistema que acredita que é mais grave quebrar uma agência bancária do que jogar bomba de gás lacrimogêneo para dispersar grupos. Pessoas morrem - e é isso que importa.

6. "E se fosse queimar bandeira LGBT, Luna? E aí? Cê acharia isso certo?". Isso já acontece. Nos protestos de maio/junho, queimaram bandeiras LGBT, do movimento negro e feminista em São Paulo. Repudiaram-se bandeiras de partidos em RJ. Nossos símbolos estão sempre sendo vandalizados e ressignificados para propósitos esquisitos de quem nos odeia - e você não vê essa comoção toda, vê? Porém, vamos relembrar a falsa simetria: quando se queima bandeiras LGBT, nós lembramos que não é só a bandeira queimada, mas é o símbolo dos milhares de adolescentes que se suicidam por não suportarem viver com o pecado de serem homossexuais ou que são assassinados pelo mesmo motivo. Quando se queima bandeiras do movimento negro, é uma lembrança de que pessoas negras ainda recebem menos do que pessoas brancas, morrem mais cedo e tem uma representação pífia em posições de poder. Ver nossos símbolos queimados e execrados é uma lembrança vívida do nosso lugar na sociedade: à margem.

Isso não acontece quando seus símbolos católicos são feridos, não é? Sua religião continua aí, toda-poderosa, e sua ideologia cristã continua determinando como eu devo usar meu útero. :)

os meus sinceros sentimentos sobre tudo isso.

2 comentários:

  1. Muito bom seu texto...enquanto o lia eu ficava aqui pensando na opressão que sinto dentro da casa da minha mãe, uma senhorinha muuuuuuuito católica que até hoje não aceita o fato de eu ter abandonado o cristianismo. Ela passou a semana inteira buzinando no meu ouvido sobre os eventos da JMJ e a-do-ra falar na maravilhosa escolha que o meu querido irmão fez: tornar-se padre. Ele é o filho perfeito. Eu e minha irmã somos "hereges". E eu ainda sou mãe solteira (com muito orgulho) e estou prestes a dar à luz ao meu brigaderinho (pq o pai é um baita negão lindíssimo, com o qual decidi não conviver por questões outras). E o que eu escuto de indiretas em relação ao "batismo" não é pouco. Eu acabo me calando pra não suscitar discussões inflamadas como a que tivemos dia desses por causa do programa Provocações do Antônio Abujanra, na TV Cultura, qdo ele ia entrevistar o Padre Beto, aquele que foi excomungado por apoiar os homossexuais. Até a Madonna entrou na história, e taí uma coisa que não consigo entender: o ódio que ela sente pela "depravada", como ela mesmo se referiu, enquanto adora apregoar às crianças (sim, pq ela é catequista) os ensinamentos de Jesus. Em tempo: uma vez quebrei uma imagem de uma santa, dentre as tantas que ela tem, num acesso absurdo de raiva. Eu demorei anos pra reconhecer que eu sou sim uma pessoa boa, mesmo não pensando como ela, mesmo não agindo como ela, mesmo não sendo cristã. Eu demorei anos para não deixar que a agressão verbal que ela me infligia pelo fato de eu não pensar e agir e orar como ela, me aniquilasse. Eu ainda tropeço de vez em quando. Tenho um amigo que diz que meu filho é meu passaporte para minha liberdade e que minha família é o mundo, independente dos laços de sangue, independente das crenças e ideologias. Eu tenho uma prima que se suicidou há dois anos muito provavelmente por não suportar os preconceitos da sua família. Ela era homossexual.
    Eu não posso deixar de dizer que fiquei chocada ao tomar conhecimento das cenas veiculadas pela mídia ontem, no que diz respeito ao comportamento de algumas manifestantes da Marcha das Vadias frente a JMJ (assim como achei cruel a distribuição de fetinhos). Na mesma hora pus-me a pensar se aquela conduta não havia sido exagerada. Li o comentário do Jean Wyllys e acabei com o meu incômodo ao aceitar o mote do "é preciso respeitar pra ser respeitado". Mas ler o seu texto me ajudou a entender os diferentes papéis que representamos e sim, a resposta do oprimido não é o mesmo que a violência do opressor.

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    1. Eu fico feliz de ter feito você repensar seus pensamentos :)
      Todo o meu apoio à você na criação do seu bebê! E todo meu apoio também para que você consiga lidar com sua família e permanecer emocionalmente saudável, porque lidar com esse tipo de situação familiar é extremamente delicado e desgastante. Deve ter sido muito difícil para você ter rompido com os padrões de sua mãe e desafiar tão abertamente, sendo mãe solteira e tudo o mais.

      No mais, obrigada! :)

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